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Por dentro do Gabinete: Caligari, as características do Expressionismo Alemão e o seu reflexo no Cinema Contemporâneo.

(dir.: Robert Wiene, ficção, 78min, Alemanha, 1920)

resenha para a disciplina de linguagem audiovisual 1 - ficção (prof. André Antônio, ECO/UFRJ, segundo período, 2013)

De tanta confusão, mesmo com tantos estudos que fazem sobre o assunto, não é à toa que não negam: O Gabinete do Dr. Caligari é um dos únicos – se não o único – filme realmente expressionista.  É um dos únicos que consegue reunir em sua síntese cinematográfica todas as características já ditas como inerentes à primeira fase da vanguarda do cinema alemão da década de 20; mímicas e expressões faciais hiperbolizadas (exageros nas atuações), deformação na cenografia, uso de telas pintadas como fundo de cenário, pouco diálogo, figurinos e maquiagens apropriados, coerência entre elementos do próprio filme a fim de criar uma atmosfera a ele mesmo, o contraste acentuado, a tão falada ênfase no jogo de luz e sombras (técnica conhecida nos E.U.A. como “Germanic Lightning”, nomenclatura responsável por disseminar a palavra “expressionismo” no mundo da sétima arte), entre tantas outras...

Enfim! Não é minha intenção começar aqui uma tese sobre o Expressionismo Alemão, muito menos tentar defini-lo. Até porque, segundo Jacques Aumont, em “O Olho Interminável”, o expressionismo no cinema não existe e nem existiu, por mais negativo que isso possa parecer. Entretanto, qualquer pessoa que tenha procurado saber um pouco sobre a vanguarda alemã vai saber que na “prática” não é bem assim. Prova disto era a generalização de que entre 1919 e 1925, toda arte produzida na Alemanha tinha seu cunho expressionista, e uma vanguarda (ou movimento como dizem nos dias atuais) não se faz de um único filme apenas.

O objetivo é fazer uma crítica ao filme de Wiene, observando como que essas características “expressionistas” se apresentam na obra e se relacionam no cinema contemporâneo de Martin Scorsese, em Shutter Island (2010).

Prosseguindo com algumas “revelações de enredo”, contextualizemos: Em uma cidadezinha fronteira com a Holanda, um homem misterioso chamado doutor Caligari (Werner Krauss) aparece e pede permissão para apresentar na feira local uma peculiaridade; o despertar de um sonâmbulo que está adormecido há 23 anos. Durante a feira, dois amigos, Francis (Friedrich Feher) e Alan (Hans Heinrich von Twardowski) resolvem adentrar ao show “O Gabinete do Doutor Caligari” e lá observam Cesare (Conrad Veidt), o sonâmbulo, acordar às ordens do doutor. Uma vez acordado, o sonâmbulo responde uma profecia a Alan e a partir dali uma sequência de casos de assassinatos começam a acontecer na cidade, deixando por todo lado um clima pesado de suspense e tenebrosidade.

 

Sendo um dos pioneiros dos filmes de Horror, Caligari surpreende até hoje novos e antigos cinéfilos que o assistem pela primeira vez. Seu brilhantismo é de tamanha magnitude que alguns cinéfilos criaram para ele uma categoria anexa ao expressionismo que tem como padrão referencial ele mesmo. Essa “categoria” viria a se chamar Caligarismo.

 

Mas o que de tão especial que o Caligarismo tem, que não é facilmente encontrado no restante dos filmes expressionistas? Dois aspectos chaves: 1) Objetiva a narração baseada em signos visuais e comumente compreensíveis (A justaposição do cenário, das atuações, dos figurinos, dos planos, da iluminação, entre outros, auto explica a história, reafirmando o próprio roteiro). Justamente por essa correlação de elementos, aliado ao pouco diálogo apresentado no filme, se observa uma tendência Kammerspiel, com a diferença básica de que ainda mantém a deformação dos seus cenários. 2) O exagero na encenação e cenografia para demonstrar uma visão distorcida do ambiente e da atmosfera (diegese) que ratifica as características patológicas das personagens. Pode-se imaginar, por exemplo, que por se tratar de uma história de um doente mental, o cenário se justifica distorcido para representar a visão que ele, o paciente, tem do mundo.  Afinal, a história é contada por ele, logo na perspectiva dele.

É realmente uma experiência estética incrível. Os elementos da imagem dialogam e compartilham de uma mesma vontade de estilo (Stilwillen) que sintetiza e expressa uma emoção ao espectador. O figurino dialoga com a “atmosfera individual” de cada personagem, como as luvas, óculos, bengala, cartola e peruca do Dr. Caligari. O próprio desenho de Cesare apresentado no cartaz que Caligari segura na feira é monocromático e possui formas distorcidas, reafirmando a ideia expressionista na cinematografia alemã.

 

A película apresenta muitos planos abertos, gerais e de conjunto usados para mostrar ao espectador o cenário e a interação dos atores com o meio; e é claro, que o uso de tantos planos abertos se dá, também, pelo tamanho e peso das câmeras que dificultavam a mobilidade de quem filmava. O uso dos planos de Close up aparecem quando se precisa realçar uma encenação que precise traduzir e expressar ao espectador uma emoção mais forte. Facilmente visto na deslumbrante cena em que Cesare desperta.

 

O contraste acentuado do Preto e Branco está sempre muito presente, se mostrando com ênfase em cenas mais sombrias como na morte de Alan, e no próprio despertar de Cesare dito antes. Nesta jogada de luzes, também irá ser tirado bastante proveito do uso da perspectiva, trabalhando com objeto de primeiro plano (onde há mais destaque, e mais luz) e o em segundo plano (que se refugia nas sombras). As formas arquitetônicas ganham bastante espaço dentro do filme, trabalhando com o fora do real, com a modificação da forma das portas, das paredes, dos prédios etc.

 

De fato, o expressionismo alemão é a aglutinação da arte, literatura e cinema. É o ponto de encontro e síntese desses quesitos tão importantes. As características imagéticas desse filme, que o torna tão singular, já foram apresentadas, mas ainda falta falar sobre o texto.

 

Nas mãos de Carl Mayer e Hans Janowitz, o roteiro apresenta uma narrativa ficcional, símbolo comum da primeira fase do expressionismo alemão, onde os romances-fantásticos da literatura do século XIX são muito valorizados como temas para os filmes desses primeiros anos. A originalidade se encontra na forma que desenvolvido a história: Dois homens conversam e um deles começa a contar uma história, onde o filme passa a ser um flashback. A trama se desenvolve até que no final eles terminam de conversar e repentinamente o contador se vê de volta ao instituto psiquiátrico, onde numa reviravolta surpreendente é apresentado para o espectador que na verdade toda aquela história não passava de um mundo fantasioso da própria mente do personagem, que identificava os outros membros do Hospital como participantes de sua história. Os argumentos são bem colocados nos momentos corretos em uma clássica narrativa-moldura, que abrira espaço para que outros roteiristas e diretores tomassem como referência para seus filmes.

 

Um exemplo disso é o grande mestre da sétima arte Martin Scorsese, que homenageando ou não, apresenta sua magnífica obra Shutter Island (2010) com grandes semelhanças ao filme de Robert Wiene. 

Scorsese adota em algumas cenas algumas interpretações hiperbólicas dos pacientes do hospital, trabalha com a mesma estrutura de narrativa-moldura, colocando alguns flashbacks na linha cronológica da história, todos eles com um alto nível de dramatização e/ou aspectos que transcendem o real. Assim como “O Gabinete do Dr. Caligari”, Shutter Island apresenta como eixo científico do tema do seu roteiro a Psiquiatria, ciência que ganha cada vez mais prestígio durante o século XX. E independente se proposital, ou não, o final é semelhante ao de Caligari. Ambos os filmes, o protagonista se descobre fantasiando dentro de sua própria história inventada (ou parcialmente colocada), sendo no fim de tudo vítima de si mesmo, onde seus vilões na verdade são gerentes da instituição psiquiátrica e os demais, membros comuns.

 

A interseção entre arte, literatura e cinema não fica pra trás, essa característica vanguardista também reflete no cinema de Scorsese. Vale observar que Shutter Island é um filme baseado no romance literário “Paciente 67” do autor Dennis Lehane.

O visual caligarista se mostra presente na estética expressionista do grotesco, reaparece na Ilha usada para locação, nas grutas e rochedos, nos relevos deformados; no retorno ao gótico, bastante presente na estética arquitetônica e na encenação extra dramática (surtos) ao ter baques da realidade, reafirmando sua condição patológica.

Independente das cenas lentas de Caligari, dos seus contínuos planos gerais e da ausência de som, Robert Wiene, Carl Mayer e Hans Janowitz nos compensam ao revolucionarem, em prática, o modo de se escrever e estetizar cinema; nos surpreendendo hoje, assim como surpreenderam em sua época (de modos diferentes, é claro). Suas outras obras não tiveram tanta repercussão quanto a história de Cesare e seu amo, mas seus nomes ficaram certamente eternizados como algumas das maiores influências do “cinema dos sorrisos maiores que as bocas”.

por lorran dias

nova iguaçu/baixada fluminense, 2013

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