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noite escura de são nunca

(dir.: Samuel Lobo . 22 min . RJ/Brasil . 2015)

 

      A ditadura no Brasil se apresenta como uma lacuna no espaço-tempo da História nacional. Um buraco negro onde sua escuridão se apresenta como alegoria do desconhecido e das incertezas de sua profundidade. Um buraco medonho sujo de sangue e horror qual se deve passar direto, uma memória a não ser revisitada. Este é o lugar reservado aos massacres totalitários, pela elite brasileira: o esquecimento.

      Noite Escura de São Nunca vem na contra-mão deste raciocínio, trazendo uma vontade juvenil, de uma geração que não viveu tal período histórico mas ainda carrega as marcas desse tempo, ainda vive governos autoritários, contradições de instituições de segurança pública que matam jovens negros diariamente, e meios de comunicação que mantém o mesmo interesse de criar representatividade e modus operantes na sociedade. Nós, Brasil, somos paredes que continuam sujas, depredadas, e como na sequência apresentada no filme, mofadas de fungos a se procriarem. O tempo marcado na matéria.

      Ao pensar em matéria, não posso deixar de refletir sobre a memória. E assim se apresentam e são construídos esses personagens: mais pela subjetividade atribuídas a eles ao passar do filme, percebida em subtextos, do que pelas aparências e os três jeitos que essas personas possam ter. Assim entendemos o contexto/trajetória das duas amigas: pelo diálogo da personagem de Guiomar Ramos, Dagmar, com seu manicure, pelos planos em que Luiza olha as grades, pela vontade de expandir a imagem-fala para fora do seu quarto, para o mundo lá fora, ao descentralizar a projeção dos indígenas para os prédios enquanto refletem sobre a experiência de ser preso. Um paradoxo da imagem/luz presa ao quarto que pretende expandir na escuridão da noite ao comum: a vontade de se tornar público sentimentos particulares. Assim, percebe-se o filme pensando o cinema e o audiovisual, não só como possibilidade de interação com a imagem, mas de possibilidade política de troca de ideias, de compartilhamento de subjetividades. São as dores vividas na ditadura que pressionam o Estado a tornar pública a discussão do autoritarismo no Brasil.

      Guiomar Ramos não está isenta desta construção, entendemos suas particularidades no filme pelos momentos dedicados ao seu universo interno (momento da aparição do demônio, suicídio etc) que ganham mais expressividade do que a sua vivência como dona de casa da vila. Não é a toa que em um momento cotidiano do lar, um demônio surge (após um som repetitivo e contínuo da máquina de lavar) dentro dos elementos - espaço e tempo rotineiros desse ambiente - , atravessando a percepção do espectador sobre a personagem e construindo as singularidades desta.

    É interessante como primeiramente esse demônio se apresenta partindo dentro de um lugar “rotineiro” da personagem e assumindo um espaço próprio, onde ele performa agonia dentro de cômodos claramente delimitados, podendo ser visto apenas na base de flashs, como se ele vivesse dentro de uma escuridão que só é revisitada por quem consegue o enxergar, o corpo a quem ele funciona como parasita. Assim, pensar este demônio é inegavelmente pensar a personagem a qual ele assombra.

      Essa personagem que vivera tal período histórico, como o filme diz, se mostra como um beco sem saída para o percurso desse demônio: um fantasma que não tem para onde seguir a não ser os limiares traçados pela sua mente, esperando ansiosamente uma brecha para se projetar no próximo alvo a ser visto, na próxima casa a ser ocupada.

      É por isso que a vila é tão importante: um amontoado de casas passíveis à mesma história, percorridas por esse mesmo gato-caçador que não dá conta de exterminar um rato resistente às estratégias de colá-lo ao chão, resistente à base da escala de opressão. Um rato tão resistente que é duas vezes maior que seu caçador. Ainda na linha de comparação do gato como opressor, podemos ligar a vontade de morte do assassino de sua irmã com os amontados de pelo no canto da sua casa, que remetem a um gato possivelmente estraçalhado.

      Samuel Lobo, que nunca vivera essa experiência histórica, se vê de frente à interrogação que é a Ditadura no Brasil e não só revisita ao sensível do espectador um passado trágico, pela ficcionalização da trama, como também busca preencher as lacunas da história com percepções extremamente atuais - que não deixam de ser frutos do passado, é claro. Por isso é tão impactante o momento em que em meio à escuridão Guiomar declama “O carro abre-alas da marcha da família é uma viatura da PM arrastando o corpo de uma mulher negra”, pois esse é o momento mais expressivo e panfletário de se preencher esses espaços desconhecidos, de atualizar o debate da ditadura: lembrar que por mais que hoje quem nos fale sobre a experiência sejam intelectuais ou ex-presos políticos — e essa experiência é legítima-, sempre houveram mães a chorar por morte de filhos, “Amarildo”s a sumirem e “Rafael Braga”s a serem bodes expiatórios.

      Esse caráter panfletário se faz necessário, pois nos mostra que não se podem relativizar as mortes e as dores de quem sofreu sem quaisquer privilégios a ditadura que se estende até hoje e que é preciso, sim, olhar para trás, para essas noites intermináveis, e perceber que o Estado sempre esteve ali nos olhando de cima para baixo, como baratas prontas a serem esmagadas.

/zona norte/rj/2016/

/lorran dias/

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