dispositivo de infiltração: uma breve análise de Doméstica
(dir.: Gabriel Mascaro, documentário, 75min, PE/Brasil, 2012)
produção acadêmica para disciplina de linguagem audiovisual - documentário (Consuelo Lins, segundo período, ECO/UFRJ, 2014)

Sete adolescentes são munidos de equipamentos audiovisual e uma missão: Filmar as empregadas domésticas que trabalham em suas residências. Mas filmar o que? A história das mais variadas figuras que aparecem durante o filme, a explicitação da relação entre empregado e consanguíneo do empregador ou a exploração do universo por detrás de cada porta específica?
O objetivo não parece muito claro nem mesmo para algumas das cineastas amadoras: Em determinado momento de exibição, Gracinha, uma das empregadas apresentadas, indaga uma possível parte da intenção do diretor ao cortar uma cebola: “ela disse que era pra gente fazer o que?”, logo respondida pela adolescente que lhe gravava fora de quadro: “ela disse que era pra gravar as coisas interessantes”.
Aqui se nota uma abertura radical da direção do filme e que se manifesta possivelmente como uma das formas mais diretas (e arriscada) de se identificar e analisar o que Mariana Souto entenderia como dispositivo de infiltração, não só ao migrar a câmera para as mãos de atores sociais pertencentes às relações já existentes antes mesmo da filmagem, mas de dar a eles liberdade; para escolher o que é mais ou menos interessante para as filmagens, o que vale a pena ser capturado, o que é dispensável etc.
Entendendo que um dispositivo é “um procedimento produtor, ativo, criador - de realidades, imagens, mundos, sensações, percepções que não pré-existiam a ele.”(LINS; MESQUITA, 2008) e que são “antes de qualquer coisa, equipamentos coletivos de subjetivação” (PARENTE, André, 2012), identifica-se a estratégia, arquitetada por Gabriel Mascaro, de distribuição das ferramentas de imagem e som como um dispositivo potente para adentrar ao íntimo das relações explicitadas e a partir do material coletado e da influência da câmera no meio, analisar o desdobramento de conceitos específicos em várias instâncias. Friso que, independente de qualquer caráter amador nas imagens, isto não deslegitima Mascaro como diretor influente no filme, já que existiram etapas antes e depois das filmagens. Afinal, tanto a criação do dispositivo de infiltração quanto o ato de montagem são processos de escolha, onde no primeiro os “personagens” são selecionados e diretrizes são tomadas e no segundo, tudo que foi adquirido passa por um outro filtro, um outro funil, e é reprocessado e reorganizado para o espectador.
Doméstica está impregnado em suas entrelinhas de questões que permeiam as discussões do campo da arte contemporânea, principalmente no cinema onde a hibridização da linguagem ficcional e da documental aparece cada vez mais consolidada. Por vários momentos do filme não soube dizer com certeza se a imagem que assistia era uma situação verídica ou inventada para que assim parecesse. Importante ressaltar que não farei uma análise detalhada dos valores entorno das cenas e nem a veracidade das intenções me interessa, mas sim a destreza com os artifícios da linguagem cinematográfica.
A câmera por vezes capturou momentos emocionantes como Vanusa dirigindo, aparentemente sozinha, quando desabafa ao som da música que tocava no rádio, Gracinha em seu quarto falando sobre a morte do seu filho, ou, por exemplo, a triste história familiar de Sergio. Contudo, a presença da máquina tinha um caráter autônomo cuja influência transformava o comportamento dos agentes sociais no meio. Palavras foram repensadas antes de serem ditas, perguntas programadas. De repente, no momento em que o botão de gravar fora pressionado, o mundo mudara e qualquer posição que esses “personagens” se colocassem, ou fossem colocados, seria uma pose, uma forma de exposição. Fatores como vaidade, curiosidade, simplicidade e relações de poder, entre outros, são determinantes para a construção de uma mise-en-scène. Como Mariana Souto comenta:
Os cenários dos filmes são, de algum modo, modificados pela inserção do aparato que filma, o que, sobretudo no caso de Doméstica, pode significar um acréscimo de poder nas relações, uma cisão entre aqueles que recebem a câmera e aqueles que são por ela observados, ao mesmo tempo um gesto de invasão e uma demonstração de interesse. Se a presença humana externa certamente afetaria a cena, não se pode dizer o contrário da presença maquínica – componente que não pode ser subtraído. No caso de Doméstica, o dispositivo não é apenas uma forma de acesso a determinado universo encasulado, mas também um elemento produtivo. (SOUTO, Mariana; 2012: 75)
Existem pelo menos dois momentos em que a relação de poder é muito clara: Em um primeiro, um dos adolescentes apresenta brevemente sua tarefa para Lucimar que sem ao menos ler ou mostrar tempo de reflexão, assina e aceita captação, montagem e exposição da sua imagem pelo documentário. No segundo, através de uma panorama – movimento da câmera sobre o próprio eixo – é colocado em cena dividido por uma parede duas realidades; Lena (personagem quase ausente no próprio bloco que filma suas relações) em suas atividades empregatícias e sua patroa, em momento de tranquilidade com a sua filha.

Essa “mise-en-scéne do amador”, assim chamada por Mariana Souto, construída por influências tanto técnicas quanto subjetivas, implícitas nas relações construídas entre documentado e documentarista, acaba por levar ao filme uma dimensão explicativa, onde a “tarefa” dada aos cineastas amadores, por mais que manifestada de forma heterogênea, gira por diretrizes e linhas que colocam as imagens e narrativa em uma mesma dinâmica, revelando signos comuns nos blocos direcionados a cada relação, através de metodologias de filmagem semelhantes que a todo tempo parecem buscar algum tipo de coerência: explorar conceitos chaves e seus desdobramentos nas mais variadas realidades. Um filme que resignifica “lar”, “família” e, é claro, “empregada doméstica”.
Questiona, por exemplo, as definições usuais de família ao explicitar almoços conjuntos com a empregada doméstica, e fatores temporais, onde um empregado estaria à serviço da família há mais de dez anos. Problematiza a integração de membros não consanguíneos na estrutura da família a partir da consolidação do vínculo empregatício. Célebre a cena em que o adolescente entrevista Lucimar enquanto ela observa um albúm de fotos. É nesta mesma cena que viria a encerrar o filme com uma afirmação sobre “liberdade” que Lucimar é questionada sobre utilizar uniforme, roupas que distinguem claramente quem está “a trabalho” e quem não está ali para isso. Quão tênue é o limiar entre “ser empregado” e “ser da família”? Para se perguntar isso, o espectador precisa se perguntar o que é então “família”. Oferece um leque de subjetivações ao espectador, mostrando questões de territorialização e controle - definição de lar, casa, relação local de trabalho x local de moradia (Deleuze) – e condutas disciplinares e normalidade, como o uso de uniforme etc (Foucault).
Um filme de muitas perguntas até na montagem: Sequências de blocos exploratórios que não possuem demarcações claras sobre início e fim. Uma organização quase que anárquica, onde o impacto e a surpresa colocam o espectador ciente de que está assistindo a outras filmagens, que fora realocado para outro contexto tanto sociocultural quanto de espaço-tempo. E é justamente assim, utilizando uma “ordem desorganizada de imagens heterogêneas” que Gabriel Mascaro acaba por relativizar conceitos e expor possibilidades de entendimento e vivência de realidades. Aqui, Mascaro diz ao espectador um pouco sobre a potência da empatia, encontrada na fronteira que separa o Eu e o Outro.
por lorran dias
nova iguaçu/baixada fluminense, 2014
referência bibliográfica por motivos acadêmicos:
DELEUZE, Gilles: Post-scriptum sobre as sociedades de controle
FOUCAULT, Michel; MACHADO, Roberto. Microfisica do poder. 26. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008.
LINS, Consuelo. O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo. In: ______. Sobre fazer documentário. São Paulo: Itaú Cultural, 2007.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. 2. ed. Campinas: Papirus, 2007.
PARENTE, André. Cinema de Exposição: o dispositivo em contra-campo. Rio de Janeiro, 2012.
SOUTO, Mariana. O direto interno, o dispositivo de infiltração e a mise-en-scène do amador – Notas sobre Pacific e Doméstica. Belo Horizonte. 2012